Reportagem Investigativa: O uso de Malaquias 3:8-10 nos púlpitos brasileiros

Reportagem Investigativa: O uso de Malaquias 3:8-10 nos púlpitos brasileiros

Reportagem Investigativa: O uso de Malaquias 3:8-10 nos púlpitos brasileiros
Por Roberto Torrecilhas
Em muitas igrejas brasileiras, o versículo de Malaquias 3:8-10 tornou-se quase um ritual no momento da coleta de dízimos e ofertas. A frase “Roubará o homem a Deus? Todavia vós me roubais…” é recitada como se fosse uma acusação direta contra os fiéis. Mas teólogos e estudiosos afirmam que o texto bíblico, em seu contexto original, não se refere ao povo, e sim aos sacerdotes que desviavam recursos destinados ao templo.
A reportagem ouviu o professor de teologia bíblica, Marcos Almeida, que explica: “O livro de Malaquias denuncia a corrupção sacerdotal. Os líderes estavam oferecendo sacrifícios defeituosos e desviando o que era consagrado. O alvo da crítica não eram os membros, mas os administradores da fé.” Segundo ele, transformar esse versículo em ameaça contra os fiéis é uma distorção perigosa.
Apesar disso, em muitos púlpitos, o versículo é usado como ferramenta de pressão. Pastores afirmam que quem não entrega o dízimo será atacado pelo “devorador, cortador, migrador e destruidor”, termos que originalmente se referem a pragas agrícolas. A ameaça é apresentada como consequência espiritual imediata, criando um ambiente de medo.
Maria de Lourdes, frequentadora de uma igreja pentecostal há mais de 20 anos. Ela relata: “Já ouvi pregadores dizendo que, se eu não dizimasse, iria gastar o dobro na farmácia. Isso me deixou assustada e por muito tempo dei dinheiro mais por medo do que por fé.”
Em contraste, o apóstolo Paulo ensina em 2 Coríntios 9:7 que cada um deve contribuir “segundo propôs no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama ao que dá com alegria.” Para o pastor reformado João Batista, esse texto mostra que a contribuição deve ser voluntária e alegre, não fruto de coação. “A Bíblia nunca chama de ladrão quem não dá dízimo”, afirma.
Jesus também abordou o tema em Mateus 22:21, ao dizer: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” O contexto era uma discussão sobre impostos, não sobre dízimos. A frase aponta para a distinção entre deveres civis e espirituais, sem transformar o dízimo em condição de salvação.
A crítica ao uso indevido de Malaquias 3 ganha força quando se observa a prática de Cristo no templo. Em Mateus 21:12-13, Jesus expulsa os cambistas e denuncia: “A minha casa será chamada casa de oração; mas vós a tendes convertido em covil de ladrões.” Para estudiosos, essa passagem mostra a rejeição de Cristo à mercantilização da fé, algo que se repete hoje em discursos que vinculam bênçãos a dinheiro.
O teólogo Paulo Henrique, autor de livros sobre hermenêutica bíblica, reforça: “O verdadeiro problema denunciado por Malaquias era a corrupção sacerdotal. O roubo estava no mau uso daquilo que já havia sido entregue, fazer mau uso é crime também , não na ausência de entrega por parte dos membros. É preciso resgatar essa leitura para não transformar o evangelho em comércio.”
O Novo Testamento reforça que a verdadeira adoração não está em valores monetários, mas em uma vida consagrada. Romanos 12:1 declara que os cristãos devem apresentar seus corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. A ênfase bíblica é na entrega pessoal e na prática da justiça, não em contribuições obrigatórias.
A reportagem conclui que o uso de Malaquias 3:8-10 como arma contra os fiéis é uma distorção que precisa ser denunciada. O texto bíblico não chama de ladrão quem não entrega dízimos ou ofertas. O chamado é para que cada um dê com alegria, sem medo e sem coação. Denunciar esse uso indevido das Escrituras é defender a pureza do evangelho e proteger os fiéis da opressão espiritual travestida de doutrina
Resumo direto: O dízimo, originalmente uma prática da lei mosaica para sustentar sacerdotes e necessitados, foi reinterpretado ao longo da história da igreja. No Novo Testamento, ele não aparece como obrigação, mas como princípio de generosidade. A igreja cristã, séculos depois, institucionalizou o dízimo como forma de sustento, mas essa evolução abriu espaço para abusos e distorções.
A prática do dízimo tem raízes muito antigas. No Antigo Testamento, o dízimo significava literalmente “a décima parte” e era uma contribuição obrigatória dos israelitas. Ele tinha como objetivo sustentar os levitas, que não possuíam terras, e também prover recursos para os necessitados. Essa prática aparece já em Gênesis 14:20, quando Abraão entrega a Melquisedeque uma décima parte de seus bens.
Com a Lei Mosaica, o dízimo tornou-se parte da estrutura religiosa de Israel. Levítico 27:30 estabelece que “todos os dízimos da terra pertencem ao Senhor”. Além disso, havia diferentes tipos de dízimos: para sustento dos levitas, para festividades religiosas e para os pobres. Ou seja, o dízimo não era apenas financeiro, mas também social e comunitário.
No período pós-exílico, como mostra Malaquias, o problema não estava na ausência de dízimos por parte do povo, mas na corrupção dos sacerdotes que desviavam o que era entregue. O profeta denuncia que o culto estava sendo profanado e que os líderes eram responsáveis por esse roubo.
Já no Novo Testamento, o dízimo não aparece como mandamento para os cristãos. Jesus menciona o dízimo em Mateus 23:23, criticando os fariseus por cumprirem a prática de forma mecânica, enquanto negligenciavam justiça, misericórdia e fidelidade. Paulo, por sua vez, enfatiza em 2 Coríntios 9:7 que a contribuição deve ser voluntária e alegre, sem imposição.
Com o crescimento da igreja cristã, especialmente após o século IV, o dízimo foi incorporado como prática oficial. A Igreja Católica, durante a Idade Média, estabeleceu o dízimo como obrigação legal em muitos países, funcionando quase como um imposto religioso. Essa institucionalização transformou o dízimo em ferramenta de poder e arrecadação.
Nos tempos modernos, igrejas evangélicas mantiveram a prática, mas com diferentes interpretações. Algumas defendem o dízimo como princípio espiritual, outras como obrigação. Em muitos casos, o discurso sobre o dízimo foi associado à promessa de bênçãos materiais, criando uma relação de troca que não aparece no Novo Testamento.
Estudiosos apontam que essa evolução abriu espaço para abusos. O dízimo, que originalmente sustentava sacerdotes e necessitados, passou a ser usado como instrumento de manipulação. A ameaça de “devoradores” e “cortadores” é uma distorção que transforma metáforas agrícolas em armas psicológicas contra os fiéis.
A interpretação correta, segundo teólogos, é que o dízimo deve ser visto como princípio de gratidão e generosidade, não como obrigação legal. O Novo Testamento desloca o foco da porcentagem para o coração do adorador. Deus não busca números, mas sinceridade e fé.
Assim, compreender a história do dízimo é essencial para evitar que ele seja usado como ferramenta de medo. O dízimo nasceu como prática comunitária, foi institucionalizado pela igreja, e hoje precisa ser resgatado em sua essência: um ato de fé e gratidão, livre de ameaças e manipulações.

Reportagem Investigativa: O uso de Malaquias 3:8-10 nos púlpitos brasileiros
Por Roberto Torrecilhas

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Robertão Chapa Quente

• Diretor do Jornal Digital do Brasil • TV DIGITAL • Apresentador do Programa Chapa Quente

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